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Cancer and transplantation are really two sides of the same coin

“Cancer and transplantation are really two sides of the same coin, because in cancer the challenge is to persuade the immune system to attack something that it is inclined to attack. In transplantation we want to pursued the immune system to ignore something that it is inclined to attack.”

Robert Lechler

Sr. Humilde e o Dr. Açougueiro: Uma Cabeça de Macaco, o Neurocientista do Papa e Busca pelo Transplante da Alma

Lendo o livro “Mr. Humble and Dr. Butcher: A Monkey’s Head” (Sr. Humilde e o Dr. Açougueiro: Uma Cabeça de Macaco) percebo como White estava a frente de seu tempo, e acredito que por certas aplicações práticas da cirurgia e técnica pesquisadas e aperfeiçoadas por ele estarem tão no futuro, fez parecer para muitos que o que ele estava fazendo era apenas um exercício de maldade contra animais ou uma curiosidade macabra sem propósito.

Dr. Robert White – neurocirurgião pioneiro em pesquisas de transplante de cabeça e cérebros isolados – compreendeu uma verdade muito antes de seus pares na comunidade médica: você não tem um cérebro, você é um cérebro. Morte cerebral não é um “tipo” de morte, é a única morte que existe. Todo o resto do seu corpo é apenas “hardware” genérico, um objeto tão descartável quanto um teclado com defeito. O único problema é que não sabemos ainda como fabricar mais desse hardware e substituir a “tomada”.

Os benefícios e vantagens disso sendo evidentes, de fato, isso seria essencialmente uma cura para todo tipo de doença e enfermidade, com exceção, é claro, daquelas que afetassem diretamente o cérebro.

E aqui se faz presente uma daquelas certas canalhas injustiças do destino, embora White tenha dominado a técnica cirúrgica de como remover um cérebro de seu corpo originário e ligá-lo a um novo organismo, existiram e até hoje existem uma série de limitações que impedem as aplicações práticas desse tipo de cirurgia:

Não fazemos a menor ideia de como reparar e reconectar o sistema nervoso nem mesmo dentro dum mesmo organismo, eis o motivo por ainda não termos uma cura para a paraplegia e tetraplegia. De modo que não podemos nem imaginar a complexidade de conectar o sistema nervoso de um organismo A ao corpo do organismo B e de fazer com que ele funcione ao ponto de enviar e receber sinais desse novo órgão. Em outras palavras, ligar um cérebro a um novo corpo hoje em dia seria prendê-lo lá, desprovido de todo sentido e sensação. Fora o desafio de lidar com a rejeição da cabeça ao novo organismo (ou seria a rejeição do novo organismo à cabeça?).

Mesmo num cenário onde tal cirurgia pudesse ser realizada, tal como transferir a cabeça de alguém que estivesse morrendo e que já fosse tetraplégico devido a uma lesão anterior (o que não feriria o “Juramento de Hipócrates”, de não causar mal), mesmo num cenário assim a questão da limitação de corpos ainda seria um desafio, já que você estaria usando um corpo para salvar apenas uma pessoa quando você poderia partilhar as diferentes partes dele e salvar muito mais vidas. Claro, poderíamos encontrar um doador e um receptor para uma meia dúzia de experimentos médicos – à fim de diminuir questões éticas, poderíamos até achar pacientes com mortes cerebral e que não teriam condições de doar órgãos (similar a como eles vem realizando muitos dos testes envolvendo xenotransplantes hoje em dia), como por exemplo: transplantar a cabeça de alguém que teve morte cerebral para o corpo de alguém que também teve morte cerebral e que tivesse aids (o que inviabiliza o processo de doação de órgãos, logo nada estaria sendo desperdiçado). Mas, novamente, levando em conta as limitações onde a aplicação prática desse tipo de pesquisa deságua – no fim do dia você não tem um estoque ilimitado de corpos com morte cerebral, e você não tem tecnologia para imprimir mais deles – infelizmente acabaram contribuindo para limitar essas pesquisas. Tal como, ainda que em menor parte, um certo tabu e pensamento medieval vindo até mesmo de alguns setores da comunidade médica, algo quase que ultra religioso, de quem acha que ligar uma cabeça a um novo corpo para aumentar seu tempo de vida é “uma ofensa a Deus ou a natureza”.

É fácil olhar para uma cena de um cérebro isolado de macaco –vivo – desconectado de seu corpo, e não pensar em quanto essa pesquisa de 1970 iria beneficiar humanos, pois, fato é: esses estudos, esse conhecimento… ele tem que começar em algum lugar. As pessoas no futuro desesperadamente precisam dele.

Por fim, há um canal no YouTube chamado “Special Books For Special Children”, o apresentador entrevista pessoas, em sua maioria crianças, portadoras de necessidades especiais. Num dos episódios que me marcou bastante, ele entrevista um garoto, o berço em que ele estava quando era pequeno pegou fogo… agora ele não parecia nem mais humano, seu corpo totalmente deformado se assemelhando mais à um alienígena de terror lovecraftiano. Apesar de seu corpo deformado, sua mente estava intacta.

Mas ele estava lá, uma linda mente presa num maldito corpo deficiente. Um dia teremos condições de ajudar pessoas como esse garoto, um dia o corpo será tão pouco importante como uma cadeira velha e teremos condição de transportar a mente humana para um novo recipiente.

White, falecido em 2011 aos 84 anos, não viveu para ver o futuro que sonhou e ajudou a escrever, mas quando alcançarmos essa maravilha científica, quando formos capazes de salvar pessoas como esse menino da dor de ter que viver uma vida num corpo deformado, será por causa de homens como o Dr. Robert White e de seu vislumbre pelo futuro que não veio em seu tempo de vida, mas que é inevitável.

Alguns pensamentos sobre a doação presumida de órgãos…

“Esposa e filho de Faustão vão à Câmara para defender a doação presumida de órgãos”

Na doação de órgãos é necessário que haja confiança. Confiança, não só de que não existe nenhum privilégio para milionários na fila, como também confiança de que os médicos tentarão o máximo possível salvar sua vida e de que não há nenhum esquema à la “Oh, vamos deixar fulano ter morte cerebral para roubarmos os órgãos dele”.

A doação deve ser absolutamente facultativa, voluntária e opcional, sem qualquer tipo de presunção por parte do Estado. Um desejo claro afirmando a vontade de doar, de preferência expressado ainda em vida pela própria vítima dando seu consentimento, na falta de alguma manifestação ou declaração do falecido – seja numa direção ou em outra – a decisão devendo então caber a família, que, via de regra, são os mais interessados em seu bem-estar e quem mais teria direito de falar em seu nome.

Qualquer coisa que vá na direção oposta, de passar por cima da liberdade alheia de doar ou não, de semear desconfiança, só fará com que pessoas e famílias que até então eram neutras percam a confiança no processo.

Um dos motivos para as pessoas acreditarem no sistema, acreditarem que o “plano” não é deixar você morrer, de que “você não é peça de reposição” (como disse um transplantado falando contra essa presunção de órgãos), de que os médicos tentarão fazer todo possível para salvar sua vida em vez de não fazer nada e deixar você morrer para seus órgãos serem vendidos para algum ricaço, é de que, depois disso tudo, na hora de doar os órgãos elas podem dizer “não”.


Por último, é interessante imaginar o tipo de conflito que essa lei causaria: o que acontece numa situação onde o sujeito não declarou seu desejo de ser ou não doador de órgão, porém onde a família não quer que isso ocorra? Diante desse conflito temos dois cenários possíveis:

1) O Estado vai simplesmente tomar os órgãos na força bruta, desrespeitando o desejo da família e essencialmente culpar o morto por ele não ter deixado em vida seu desejo de não ser doador.

2) Apesar do “consentimento presumido”, a família do morto tem o poder de passar por cima dessa presunção e negar o transplante. Nesse caso, o projeto de lei é inútil, já que as famílias que não quisessem doar iriam continuar não querendo doar. Que pelo que pesquisei, é o que acontece na Espanha, onde embora na teoria existam leis presumindo o transplante de órgãos, na prática a família é sempre consultada e o processo necessita da autorização dos mesmos.

Apesar de tudo isso que disse aqui, não sou totalmente contra algum tipo de mudança. Sempre defendi a liberdade individual, e acho que se a pessoa declarou em vida que quer ser doadora de órgão e a família discordar, o desejo do falecido deveria se sobrepor ao desejo da família. Pois, também me pareceria injusto se o falecido gostaria de doar, e esse desejo não ser respeitado ou não ter mecanismos na lei para respeitar o desejo dos falecidos (ainda que eu seja muito cínico em relação à aplicação prática das leis brasileiras, no mínimo num país que funcionasse, essa seria uma boa mudança).